segunda-feira, 23 de junho de 2014

O PRIMEIRO PEIXE CRU

COMI O PRIMEIRO PEIXE CRU E ACHEI QUE ESTAVAM ME GOZANDO.

andré ganzelevitch


Nos anos 70 era quase impossível encontrar um brasileiro num restaurante japonês do bairro da Liberdade, em São Paulo. Os poucos que eventualmente se viam, em geral estavam acompanhando amigos japoneses ou descendentes.
A gastronomia conhecida era a italiana, a portuguesa, a árabe, colônias antigas e com cultura e costumes fortemente consolidados na cidade. Outras eram menos notórias, mas também razoavelmente conhecidas como a lituana, na Vila Zelina, a judaica no Bom Retiro – que nessa época quase não tinha bolivianos e certamente não havia coreanos, só a comunidade judaica mesmo – a alemã na região da Cantareira e em alguns bairros da Zona Sul, a russa, na zona sul e mais algumas colônias que não saberia mencionar.
Mas a cozinha japonesa mesmo, apesar de antiga, só japonês comia.Eu estava trabalhando no escritório central da Cooperativa Agrícola de Cotia, no Largo da Batata, em Pinheiros, naquele que já era o terceiro de muitos e breves empregos que tive durante os anos que fui empregado.
Péssimo para meu currículo profissional, pois revelava falta de estabilidade, mas ótimo para minha posterior vida de consultor.
Trabalhar com japoneses foi uma experiência inesquecível em vários aspectos. O primeiro, sem dúvida, foi a forma de relacionamento social. Para alguém saído de família espanhola, com constante convívio com brasileiros e hispano-americanos, foi um choque encarar um comportamento que me parecia frio, quase excludente e de com um foco tão forte no trabalho que mais parecia um quartel.
Nesta época, eu e minha família tínhamos nos mudado da Av. Cásper Líbero para um novo apartamento no primeiro andar de um prédio no Largo do Arouche. Minhas irmãs Carmem e Maruxia tinham casado, meu irmão Wladimir tinha ido morar numa república com amigos, no bairro de Pinheiros, menos gente, apartamento menor. Infelizmente a localização era desfavorável. Na subida do Largo, vindo a Rua Amaral Gurgel em direção à Rua do Arouche, do lado direito. Os ônibus faziam um barulho enorme subindo essa ladeira.
Pra ter ideia de minha estranheza com os hábitos dos meus colegas japoneses basta contar que um dia eu cheguei atrasado por conta de um acidente que aconteceu logo cedo no Largo do Arouche. Eu estava saindo do prédio quando uma pessoa foi atropelada por um ônibus. Ajudei a socorrer e permaneci lá até que a ambulância chegasse.
Contei isso ao meu chefe para justificar o atraso e ele me perguntou:
“- A pessoa era seu parente?” Respondi que não, nem conhecia. Ele então questionou porque eu tinha perdido tempo e até chegado atrasado ao trabalho, envolvendo-me em um acidente que não tinha nada que ver comigo. Diante de minha atônita mudez ele deu as costas e foi sentar-se à sua mesa sem dizer mais nada.
A empresa acima de tudo! Lema novo e esquisito para mim. Mas não demorou muito para que eu começasse a perceber a forma deles manifestarem amizade e até afeto. Do jeito deles, bem entendido. Claro que eu me relacionava com rapazes de minha idade, auxiliares de contabilidade, assistentes de diretoria, funcionários do DP, etc. Niseis, sanseis e yonseis. Mas a quantidade de japoneses (isseis) era grande e estavam, principalmente, nos postos de chefia, além das centenas de cooperados, claro.
A sala em que eu trabalhava ficava ao lado da sala de reuniões da diretoria e era ocupada por um nissei que era o chefe da seção, dois auxiliares sanseis, eu, um senhorzinho japonês, miudinho que era tradutor e uma senhorinha japonesa que era datilógrafa de japonês. Isso mesmo. A tal máquina de escrever em japonês tinha uma tecla só e uma bandeja com dezenas de tipos metálicos que se descolava para os lados, para frente e para trás. Acima, o rolo onde se colocava o papel era semelhante ao de qualquer outra máquina de escrever. Do lado esquerdo e direito a simpática senhora ajeitava caixas estreitas e longas de madeira, contendo outras dezenas de tipos metálicos que ocasionalmente ela intercambiava na tal bandeja móvel. Pode-se imaginar que datilografar um documento de uma lauda demorava algumas horas. Dessa maquina também saia o stencil, matriz para imprimir num mimeógrafo a circular aos cooperados que que não falavam nem liam português.
Um dia, durante uma reunião de diretoria, vinha de lá de dentro um estranho barulho, como se fosse um monte de matracas sendo agitadas ao mesmo tempo. Tátátátátátá…
Muitas risadas, novo disparo forte tátátátátá…. novas gargalhadas!
Achei curioso e olhei para meus colegas na sala. Eles pareciam não ouvir nada. Absortos cada um em seu trabalho, sem dar qualquer atenção ao inusitado barulho.
Em poucos minutos abriu-se a porta e saiu o presidente da cooperativa, brincando com um bat-bag, seguido de vários outros diretores também tentando fazer as bolinhas bater por mais tempo… todos em fila indiana, rindo e batendo bat-bags.
Achei aquilo incrível. Como é que uma reunião de diretoria terminava daquele jeito?
Aprendi que os japoneses, nos momentos em que resolvem descontrair, são divertidos e viram verdadeiros moleques. Embora tenha hora pra começar, hora pra terminar e limites.
Num sábado, junto com vários outros colegas de trabalho, fomos a um restaurante japonês. “Você vai adorar”, garantiam eles. Um deles, o Oswaldinho, disse isso com um meio sorriso que pensei captar, ser gozação. Ele seria meu amigo por muitos anos, mesmo depois de eu ter ido para outras empresas.
Sentamo-nos à mesa, palitos (hashi) dispensei logo. Munido de garfo provei uma pequena salada de pepino cortado em fatias quase transparentes, de tão finas, com um tempero meio adocicado, meio azedo e sementinhas de gergelim. Achei bom. Aí veio um barco enorme colocado no meio da mesa. Estávamos em 4 ou 5, não lembro.
O conteúdo parecia mais um arranjo decorativo do que comida. Até porque tinha uma pedra no meio, encima da qual também havia fatias coloridas de peixe, bolinhos de arroz com coberturas variadas (niguirizushi), alguns com uma “cinta” preta que parecia uma fita isolante, só que mais fina. Outros eram uns rolinhos de arroz, com a tal cinta preta por fora e alguma coisinha verde ou vermelha no centro. No meio disso tudo, descobri uns camarões, mas também servindo de cobertura para bolinhos de arroz e aparentemente meio desbotadinhos. Não corados como os camarões que eu conhecia.
Imitando o gesto dos meus amigos, enchi o pratinho quadrado à minha frente com um molho preto, peguei um daqueles bolinhos, molhei no pratinho e enfiei na boca.
Olhos pregados na minha expressão. O Oswaldinho, o menos japonês deles, soltou uma sonora gargalhada e os outros, já vermelhos, não seguraram mais e começaram a rir. Não sei que cara fiz, mas jovens de qualquer nacionalidade adoram ver o outro em situações hilárias.
Eu levei alguns segundos pra decidir se engolia ou se levantava e ia pro banheiro.
Resolvi mastigar e engolir.
“- Esse troço está cru” reclamei. Mais risadas. Ao saber que aquilo se comia cru mesmo pensei que devia tentar descobrir porque eles achavam essa comida tão gostosa. Confesso que tive que esquecer todos os sabores que tinham me servido de referência até aquele dia. Mas acompanhados de bom papo, muita cerveja e muito saquê, até que os bolinhos com peixe e as fatias cruas não foram tão ruins com me pareceu no primeiro bocado. Saímos de lá bem alegrinhos. De tanto saquê com cerveja eu já estava cantando em japonês.
Para minha surpresa, dias depois a lembrança daqueles sabores tão diferentes me veio à memória em forma de água na boca.
Nos anos 70, quando quase nenhum brasileiro comia peixe cru e sushis, eu já estava irremediavelmente fisgado pelo que nos anos 80 e 90 viraria moda e hoje é tão incorporado ao nosso paladar quanto o arroz e feijão, a pizza e as esfihas.
Bendito sushi.

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