terça-feira, 20 de novembro de 2012

A PRESA NA FÍMBRIA DO REBANHO


Quando tinha por volta de trinta anos, entrei rotineiramente numa padaria da Vitória para comprar pães.
Deparei-me com uma garota de vinte e poucos anos, muita branca, olhos azuis, cabelos negros, lábios vermelhos como lacre, sorriso angelical - do rosto parecia emanar a bondade de uma santa.
Sorri, imediatamente e instintivamente para ela; e fui correspondido.
Uma daquelas situações em que o interesse masculino é demonstrado de modo tão natural e genuíno, que dificilmente uma mulher deixa de correspondê-lo; ao menos com um sorriso ou uma discreta demonstração de vaidade pelo entusiasmo despertado.
Mas havia um problema: as duas pernas, ligeiramente atrofiadas, estavam envoltas por aparelhos metálicos e ela se apoiava em muletas.
O primeiro impulso foi falar com ela, mas o defeito físico refreou o movimento.
Eram seis horas da tarde; a padaria estava repleta de pessoas; imaginei que elas me veriam com um aproveitador da vulnerabilidade da jovem – o lobo que investe contra a ovelha doente na fímbria do rebanho.
Comprei os pães e voltei caminhando para casa.
Em meu solilóquio surgiram as seguintes questões: Não ter falado com ela fora uma forma de discriminação? Afinal, ela despertara meu interesse masculino, a despeito de seu problema físico – e não era isso exatamente o desejável? Falar com ela não seria o comportamento mais normal, menos discriminatório? Ela não teria se sentido discriminada porque não me aproximara? Apenas a abordagem de um homem também fisicamente defeituoso seria vista como natural, sem o componente de “aproveitamento” da vulnerabilidade?        
As questões permanecem em aberto até hoje.

Marcos A. P. Ribeiro



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts with Thumbnails