segunda-feira, 17 de setembro de 2012

TEXTO DE MALU FONTES


O CORPO COMO CAPITAL SOCIAL


Há menos de um mês, este jornal trouxe como capa e matéria principal mais um dos índices vergonhosos que a Bahia ostenta. Sob a manchete “Infância Roubada”, os dados impressionavam pela crueldade e pela quantidade: todos os dias, em Salvador, uma criança ou adolescente é sexualmente abusada. Além de Salvador registrar um caso de abuso por dia, o estado da Bahia aparece, de janeiro a junho de 2012, no primeiro lugar do ranking nacional desse tipo de crime, com 1.980 casos, segundo a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

Diante de estatísticas desta natureza e do merecido destaque na imprensa, o senso comum sai-se com duas perguntas, que nunca variam: cresceu o número de pessoas cruéis ou psicopatas capazes de abusar sexualmente de crianças ou adolescentes ou cresceram os mecanismos que encorajam as famílias das vítimas e a sociedade a procurar serviços de denúncia e de proteção à criança?

No espaço vão entre essas duas perguntas, cujas respostas, se existissem objetivamente, dificilmente ajudariam a combater o problema, há um cenário muito mais poderoso e paradoxalmente mantido em silêncio quando se busca as razões para que tantas crianças e adolescentes sejam vítimas de abusos de adultos, frequentemente dentro da própria família. Esquece-se, nesta equação, de lembrar o papel de fundo da indústria cultural em torno da promoção do desejo pelo corpo feminino e do incensamento que se faz diariamente, inclusive na própria imprensa, em torno de mulheres que só se destacam na vida pública pela via do corpo, instrumento de ascensão socioeconômica e gancho para serem alçadas ao posto de invejáveis musas nacionais, invejáveis portanto, por qualquer menina em formação. Não dá para fechar os olhos e descolar as práticas sociais dos discursos culturais dos convites que estes fazem a toda uma população, sobretudo a crianças em processo de formação.

As letras de músicas que se tornam hits e, sobretudo, as coreografias que as acompanham e que muitas vezes pais orgulhosamente chegam a achar graciosas quando encenadas por perninhas e quadris precoces são, sim, por mais desagradável que possa soar a muitos, convites explícitos à manifestação precoce da sexualidade nos corpos infantis, sobretudo das meninas. E fala-se aqui de meninas porque boa parte das letras musicais de duplo sentido, ou de sentido explícito mesmo, refere-se ao corpo feminino.

Quem vê uma garotinha de 10 anos dançando numa festa de família, rebolando ao som de um hit local e com o indicador agilmente migrando da boca para o umbigo e para a púbis e descendo até o chão e acha engraçado ou gracioso perde o direito de se chocar com as estatísticas de sexual. Coreografias dessa natureza e o desfile ininterrupto na mídia de musas coroadas em função dos glúteos não são outra coisa senão convites permanentes à sexualidade precoce. Aqui, aprende-se muito cedo que o corpo é um valoroso capital social. Dependendo da classe social pode ser, inclusive, o único.

Malu Fontes é jornalista e professora de jornalismo da UFBA.
Texto publicado no Correio*, Salvador, 14 set. 2012, pag. 02

COMO O LEITOR PODERÁ CONSTATAR A PARTIR DE AGORA A EXÍMIA PROFESSORA DE JORNALISMO SERÁ PUBLICADA PELO JORNAL "O CORREIO"
PESSOALMENTE, NÃO ENTENDO COMO A TARDE DISPENSOU TÃO IMPORTANTE COLABORAÇÃO.

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