quinta-feira, 26 de abril de 2012

ARRASTÃO

Durante a recente greve da polícia militar, cerca de vinte homens jovens, todos negros ou quase negros, a maioria sem camisa, vestindo bermudas longas, alguns com bonés virados, outros com colares de metal prateado no pescoço, invadiram um sebo situado no Largo do Porto da Barra, gritando
:- Queremos livros!
Surpreendidos, os proprietários pensaram, a princípio, que os jovens quisessem dinheiro ou objetos de valor material - celulares, computadores, relógios.
Mas não. Eles se dirigiram diretamente às prateleiras e exigiram, aos berros:
- Livros!
Os proprietários imediatamente ofereceram Paulo Coelho e outras obras de auto-ajuda, além de O Código da Vinci, Harry Potter, O Crepúsculo e livros nos quais belos adolescentes são magicamente felizes, sem qualquer vínculo com a realidade adulta. 
Mas os invasores os recusaram. Continuaram, violentamente, desesperadamente, a retirar livros das prateleiras e a lançá-los ao chão.
Apreensivos quanto às conseqüências, os proprietários, cautelosamente, resolveram subir um pouco um nível e, como havia muitas obras de Jorge Amado, em edições baratas, encalhadas, ofereceram-nas ao bando.
Em resposta, receberam palavrões, safanões, tapas e coronhadas.
- Queremos os melhores!Só os melhores!
- Não tentem nos enganar!
Um deles apontou um revólver para um dos proprietários e bradou, ameaçadoramente:
- Onde estão?
Completamente aturdidos e, ao mesmo tempo, dotados de delicada e meticulosa cautela, os proprietários mostraram-lhes Machado de Assis, Guimarães Rosa, Drummond, Cabral, Bandeira, Graciliano Ramos.
Os olhos dos assaltantes brilharam:
- Isso mesmo!-
São esses que queremos!
E avidamente, atabalhoadamente, começaram a colocar os livros em grandes sacos de plásticos que traziam consigo.
   Incrédulos, perplexos, os proprietários observaram a cena como se estivessem diante de uma intervenção do fantástico no cotidiano.
Então os jovens vociferaram, quase em uníssono:
- Os estrangeiros!
- Onde estão os estrangeiros?
Eles estavam muito bem informados; recusaram autores de segunda ordem e exigiram:
- Cervantes, Shakespeare, Dante, Dostoiévski,  Fernando Pessoa, Joyce, Proust, Thomas Mann…
Os proprietários foram obrigados a oferecer-lhes seus melhores autores; temiam às conseqüências, para sua integridade física, da tentativa de enganá-los com autores menores.
Com os sacos repletos de grandes obras literárias, os jovens apontavam dedos em riste e punhos cerrados para o ar e agora gritavam:
- Filosofia!
- História!
- Antropologia!
- Política!
- Geografia!
Grandes clássicos dessas disciplinas foram-lhes, então, apresentados.
Após cerca de uma hora, os saqueadores, carregando volumes abarrotados de livros, saíram do sebo, rindo alto, comemorando o botim; alguns deram tiros para o alto.
Os proprietários comunicaram imediatamente o ocorrido aos poucos policiais que permaneciam de plantão, que, entretanto, se recusaram a registrar a queixa, por lhes parecer inverossímil.
Ameaçaram-lhes de prisão, por tentativa de ridicularizar a polícia.
O delegado riu com sarcasmo zombeteiro:-
 Roubar livro, se isso existir, não constitui crime!
Contudo, não se sabe como, a informação sobre o insólito episódio circulou e foi noticiada pela imprensa.
Gerou imediatamente grave preocupação aos governantes e em toda a cúpula do establishment nacional.
O Gabinete de Segurança Institucional reuniu-se de emergência.A Agência Brasileira de Inteligência convocou, em caráter extraordinário, seus agentes.
O Alto Comando do Exército foi alertado.
Editorial de um importante jornal paulista advertiu para “as funestas conseqüências para o equilíbrio e a ordem social caso as massas iletradas, ao tomarem conhecimento de seus direitos, por intermédio de clássicos da literatura universal e das ciências humanas, subitamente passem a reivindicá-los por meios violentos.” 
O governo federal e os órgãos de segurança nacional concluíram, após investigação emergencial e sumária, que “intelectuais infiltrados junto aos que não tiveram acesso à educação formal os teriam instruído sobre as obras fundamentais, tanto nacionais quanto estrangeiras, para a formação da consciência sociopolítica e à independência de julgamento.” 
 O presidente da República, em cadeira nacional de rádio e televisão, fez o seguinte pronunciamento: “Existe considerável risco de que o movimento violento e espontâneo dos intelectualmente excluídos, que se iniciou na Bahia, berço da nacionalidade, estado-mãe da brasilidade, se dissemine pelo território nacional, com graves conseqüências para a ordem pública. Desse modo, o governo federal, em cumprimento de suas obrigações constitucionais, adotará as medidas excepcionais necessárias à manutenção da normalidade social.”
Os serviços de segurança do governo federal e das forças armadas passaram a controlar, de forma velada, as atividades de todos os intelectuais do país. Professores universitários da área de ciências humanas foram vigiados e seguidos; suas correspondências, física e virtual, e a comunicação telefônica, monitoradas sem autorização judicial, impossível de ser obtida, em curto prazo, para milhares de pessoas. Como justificativa, o governo alegou que a situação excepcional exigia medidas excepcionais.
    Decreto presidencial determinou que os compradores de livro devessem informar profissão e endereço; esses dados ficariam registrados nas livrarias. O livreiro foi legalmente responsabilizado pelo registro e arquivamento dessas informações. Em casos suspeitos – ou seja, em situações em que o livreiro suspeitasse que o livro destinava-se a pessoas que o utilizariam para fomentar a cizânia social, a desordem pública, esse deveria sustar a venda e informar ao governo os dados do pretenso comprador.
Tentou-se, assim, evitar-se, a todo custo, o contato da turba rústica com os livros.
Embora não tivesse sido oficialmente estabelecido, informalmente instalou-se, no país, uma espécie de estado de sítio, que, na prática, suprimia as garantias constitucionais.
Toda pessoa suspeita de colaborar, de algum modo, com a patuléia, teve seus movimentos controlados e, um eventual contato com os intelectualmente desprovidos, impedido.
Nas portas de cada livraria, de cada biblioteca pública, foram postados guardas armados. A polícia federal, a força de segurança nacional e o exército foram utilizados para impedir que os saques a livros se repetissem.
Os assaltantes do sebo baiano foram implacavelmente caçados pelo exército e presos; todos os livros roubados, apreendidos.
Com essas medidas, a rebelião popular foi controlada.
Para evitar que o fenômeno se repetisse, as autoridades criaram um programa para a distribuição subsidiada de instrumentos musicais, aparelhos de som e aulas de capoeira à população – o Bolsa Diversão. Shows musicais passaram a ser oferecidos gratuitamente nos bairros periféricos, três vezes por semana, sem controle do volume sonoro.
O Brasil continuou a ser o paraíso da alegria vã e leviana - para gáudio dos governantes e dos gringos que nos visitam.

   Marcos Augusto Pessoa Ribeiro
marcos.ribeiro@trf1.jus.br
   

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