quarta-feira, 10 de agosto de 2011

O alquimista e o estudante

Comer é, para o gastrônomo, ir à descoberta - sempre ansiosamente aguardada - de novas sensações. Mas também pode ser um mergulho na memória, volta sensorial à infância ou viagem pelas terras dos antepassados. Quando estudante numa escola de arte em Paris, lá pelos idos dos anos 50, ao receber a mesada, meu maior prazer não era comprar “aqueles” sapatos ou alguma cobiçada camisa nova, mas entrar, timidamente, num bom restaurante. Meu preferido era a “Taverne de Nicolas Flamel”, no quartier do Marais, hoje a dois passos do Museu Picasso. Por que esta preferência? Por várias razões. Primeiro, por se tratar de uma das casas mais antigas de Paris, datando de 1407. Ou seja: uns cem anos antes da louca aventura das três caravelas rumo a um horizonte que talvez tivesse fim. O Sieur Flamel era alquimista e pretendia poder transformar chumbo em ouro.
L Auberge Nicolas Flamel, Restaurant à Paris
Entretanto, mais que o lunático pesquisador, era outro personagem que me atraía, muito mais prosaico. O lendário crítico gastronômico Curnonsky tivera lá sua mesa cativa, perto de uma das duas janelas, fato atestado por discreta etiqueta de latão gravado. Era nesta mesma mesa, claro, que sempre desejava sentar. Chegando cedo, não era impossível. O venerável autor de mais de 65 livros sobre o assunto, na realidade se chamava simplesmente Maurice Edmond Sailland. Usava o apelido russo porque, no princípio do século XX, os exilados aristocratas russos estavam na moda na Cidade Luz. Apoderava-me calmamente da cadeira e, com o duplo cuidado de harmonizar os pratos e poupar minhas magras finanças, escolhia o menu.
 Qual observador não estranharia um garotão -18 ou 19 anos -  solitário, comendo devagar sem dar muita atenção ao espetáculo da rua? Era para mim um ritual. O ritual de uma religião profundamente epicuriana. Mas também uma viagem no tempo, graças a este cenário medieval. A história silenciosa cochichava nas pedras das antigas paredes e no reluzir dos móveis sombrios que o branco impecável das toalhas realçava.
O tempo parisiense terminou. Mergulhei no fog londrino e lá, em evidente sinal de autodefesa gustativa, aprendi a cozinhar. Nunca mais voltei ao Nicolas Flamel. Não por infidelidade, mas por longo esquecimento. Mas, o Google afirmando que continua a existir, prometo ir quando da minha próxima viagem ás origens.

Dimitri Ganzelevitch
Produtor cultural e crítico gastronômico

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