quarta-feira, 23 de março de 2011

Carcará: pega, mata e come

“O mundo precisa de poesia”. É com esse nome singelo, piegas, demagogo, que Maria Bethânia pretende salvar o mundo, entre Candido, Pollyanna e Ana Buarque de Hollanda, atual Ministra da Cultura do PT de Lula – porque jamais o foi de Dilma Roussef, ocupadíssima em aprender a falar com um pouco menos de erros de concordância e regência. Essa poesia da qual o mundo precisa, e que custa 1,3 milhão para a produção de um blog com vídeos postados diariamente, durante um ano – portanto, 365 vídeos –, parece prescindir da consciência de que o mundo, em verdade, precisa mais urgentemente de distribuição de renda para resolver questões elementares como a fome no país, a educação primária e a saúde pública. Como é que um desnutrido terá capacidade de assimilar uma metáfora, ou uma criança viciada em crack assumirá o status de leitora internauta, se nem mesmo tem olhos e ouvidos para outra coisa senão delírios e chamados da droga, numa vida de sarjeta e luzes apagadas, sem nem mesmo tomada para instalar um computador? Por outro lado, quantos livros de poesia poderiam ser distribuídos entre estudantes e afins, com esse dinheiro? E a capacitação de professores que possam tirar do ar, imediatamente, o aprovado imbecilizante e excessivamente petista de Jorge Portugal? (a propósito, o PT surgiu como uma promessa contra todo e qualquer tipo de superfaturamento, e o que vejo, a todo instante, é dinheiro saindo pela cueca – e calcinha).
Em que consiste, exatamente, o projeto de Maria Bethânia, cuja captação de R$ 1,3 milhão para um blog de poesia, causou tamanho estardalhaço nacional? Simples e pobre, apesar de milionário, em mais um superfaturamento de beldades, sobre o MinC (Ministério de Cultura), que sempre abriu as pernas dessas parideiras consagradas.
Serão 365 vídeos de 60 segundos, um por dia do ano, com coordenação do sociólogo tropicalista Hermano Vianna, apenas um pouco mais magro e discreto que o apresentador de tevê Marcelo Taas. A direção deve ser assinada pelo jovem oportunista Andrucha Waddington, um rapaz mais articulado e bonitinho do que talentoso, realizador da mediana e festiva película Eu, tu, eles.
Pois bem, é na base do eu, tu, eles, que Bethânia resolveu fazer uma ação entre amigos, superestimando seu trabalho como recitadora de poemas – bastou receber homenagem dos portugais, pelos serviços prestados à divulgação de Pessoa, para achar-se merecedora de tão vultosa soma em dinheiro, para falar 60 segundos por dia, num exercício hercúleo (ou herculano, para não sair da história, por meio de um de seus maiores historiadores, o poeta e romancista Alexandre Herculano) –, se utilizando de um veículo cuja marca registrada é o valor baixo de suas ações; veículo esse utilizado por milhões de divulgadores de poesia em todo o mundo, que nada ganham por isso, entre professores, poetas e os assim chamados agitadores culturais.
Não há verdade alguma em afirmações sobre a paixão pela Bahia, pelo país em que nasceu, pela poesia, pelo povo que sustenta esses artistas e seus discursos. Um show de Bethânia costuma custar algo em torno de 150 reais. Se pensarmos que se trata de música popular, e que uma das canções mais famosas da cantora de Santo Amaro se chama Carcará, que a lançou nacionalmente, ao substituir Nara Leão, em 1965, no programa de auditório Opinião...
Por que o Ministério da Cultura não usa um terço do dinheiro pedido por Bethânia para seu projeto “inovador” e investe no salário dos professores de Literatura, que são muito mais que recitadores de poemas – esses existem até em praça pública, e vivem uma vida miserável, de cachaça das mais baratas, prato-feito quando almoçam e certo tipo de cigarro para se livrar, por um tempo, da realidade sufocante –, e que trabalham horas e horas por dia, em constante formação de leitores conscientes não só em poesia, mas do mundo ao seu redor e de sua condição no mundo? Ora, porque esses professores são anônimos. Trata-se de uma espécie de carteirada, mesmo, em que a opípara celebridade pergunta coisas do tipo: “Você sabe com quem está falando?”.
O poeta e escritor baiano Cazzinho vem fazendo, há anos, excelente divulgação de poesia em blog, com vídeos, entrevistas etc., tudo às custas do anarquismo tão saudável e desafiador que a rede estimula, sobrecarregando o proponente de toda a responsabilidade de seu desejo de expressar opinião e filiações. A opiniática Bethânia, no entanto, muito pobre, provavelmente, e sem qualquer condição de reunir amigos em prol de um mundo que precisa de poesia, resolveu entrar pela janela, numa desrespeitosa atitude diante dos artistas da arte poética desse país tão corrupto, tão cheio de injustiças, sempre associadas tão somente a políticos. Mas quem não é político? Sobretudo aqueles dotados de farto poder e populismo?
A polêmica começou quando a colunista da Folha de São Paulo, Monica Bergamo, noticiou a tal aprovação da captação do valor astronômico para o blog do carcará. Procurado pela Folha, o cineasta Andrucha Waddington deixou claro que já havia perdido a paciência. “Parece que eu tô roubando alguém”. Mas “tá”, Andrucha, e não alguém, mas uma multidão de brasileiros. É possível ser menos cínico e pretensamente ingênuo? “É tão patética a discussão que eu não quero mais falar”, rematou o gênio. Não quer mais falar por falta de argumento, naturalmente, ao confundir “discussão patética” com “povo pateta”. Afinal, ainda que se trate de captação de recurso, junto a empresas patrocinadoras supostamente interessadas, alguém com tal soma em dinheiro na mão é um criminoso, num país com alto índice de analfabetismo, que não terá acesso irrestrito ao tal blog de poesia. Não conheço projeto algum voltado para a educação, em toda a história do Brasil, que houvesse custado 1,3 milhão, sem desvios esconsos de verba.
Para completar um dos capítulos mais vergonhosos da história da MPB (Maria Pecuniária Bethânia), o MinC ainda se enrolou todo para explicar o inexplicável, aquilo que talvez somente os ufólogos consigam resolver, numa ilação supra-racional. Segundo nota redigida pela assessoria de comunicação do MinC, o projeto de Bethânia, aprovado para captação pela Lei do Audiovisual, havia sido aprovado pela CNIC (Comissão Nacional de Incentivo à Cultura). Acontece que a CNIC só analisa projetos que se utilizam da Lei Rouanet.
É muito fácil compor e cantar a canção Haiti. Difícil é descer do palco.

HENRIQUE PASSOS WAGNER

Um comentário:

  1. Perdoe-me o comentário off topic, mas sou sua fã e volta e meia indico a leitura do seu blog aos meus amigos do facebook.
    Bem que você poderia disponibilizar seus artigos por lá.
    Volto depois para comentar este "patrocínio" à cantora amiga da ministra.

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