quarta-feira, 9 de março de 2011

A BICICLETA VERMELHA

Em 1948 eu tinha 12 anos. A segunda guerra mundial ainda estava presente, mesmo em Marrocos, nos medos e na mesa. Não havia muito, minha avó ainda procurava misteriosas plantas nos campos para inventar uma sopa. Faltava comida, faltavam remédios...

Ter uma bicicleta era meu sonho louco de pequeno estudante. Não que realmente precisasse. O colégio ficava a quinze minutos a pé de casa e Rabat, a pequena cidade onde nascera, ainda me parecia imensa, cheia de armadilhas e perigos á espera das crianças.
Mas quem tem bicicleta é rei.
Pedalar devagar, sem aparentar esforço, usar o freio como por acaso, com desenvoltura, dirigir com uma mão ou só por equilíbrio, de repente, com meia dúzia de pedaladas, voar para a outra ponta da rua, para os mais experimentados dirigir de costas, sentado no guidom, e quando a noite chegar, ligar o farol, ouvir seu ronrom e ver o mundo resumido a um hesitante facho de luz rasgando a obscuridão....
Mas lá em casa, o dinheiro era curto e minha avó tinha outras prioridades.

O tio Boris vivia em outra cidade, Agadir, perto do deserto do Saara. Era o ricaço da família. Seu bigode longo, esguio e aloirado cheirava a cigarro esfriado. Falava alto e com grande autoridade. Muito usava deste poder. Exigia respeito.
Chegava de imprevisto no seu carro reversível e barulhento. Quem tinha ou sabia usar um telefone naqueles tempos, na primeira metade do século XX?
Havia sempre presentes no porta-malas. Tínhamos que agradecer repetidas vezes. Passava umas horas, uma noite, e seguia para o norte, até Tanger. A casa iria permanecer agitada por vários dias.

Mas uma visita ficara especialmente gravada na minha memória.
O costumeiro buzinaço levou mais uma vez toda a vizinhança á janela. Correndo até a varanda, vi lá de cima, no porta-malas do carro, um imenso embrulho que só podia esconder uma bicicleta!
Não acreditava! Uma bicicleta!
Desci a escadaria aos pulos e sem mesmo saudar o tio, rasguei o papelão.
Acreditem se puder: ao ver a bicicleta reluzente, tive uma reação de rejeição: ela era vermelha e eu sempre sonhara com uma bicicleta azul.
Vermelho escuro, já velho, pesado, sinistro, em vez de azul leve como o céu, como a adolescência...
Nenhum dos meus amigos tinha uma bicicleta vermelha. Não fazia parte de nossas referências estéticas de crianças. Meu entusiasmo tinha desaparecido. Odiava meu tio, a bicicleta, chorava as expectativas frustradas.
Vermelha! Como o tio Boris podia ter escolhido cor tão abominável?!...

Traduzindo como emoção meu mutismo, o homem fazia o elogio do presente, ficava ele mesmo vermelho de auto-satisfação, mostrando cada detalhe, e a cada qualidade realçada, minha raiva crescia...
Claro que acabei me acostumando com o engenho. Subi com grandes esforços muitas ladeiras e escorreguei inebriado as mesmas tal qual um corredor de fórmula 1.
Mas ainda hoje, mais de meio século passado, ainda persiste o gostinho amargo da desilusão exacerbada por ter recebido uma bicicleta vermelha.

Dimitri Ganzelevitch Salvador, 10 de Novembro de 2007.

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