sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A injustiça social venceu

Há vinte anos, jogava futebol no Porto da Barra, com os barraqueiros daquela praia.
Após uma entrada mais dura de um adversário, passamos a nos estranhar; entrávamos nos lances seguintes sempre preparados para um confronto físico - nossas canelas se chocavam como força desproporcional à necessária à resolução da jogada.

Naquele momento, com aproximadamente a mesma idade, éramos fisicamente equivalentes – eu mais alto, porém mais magro; ele, mais baixo, mais musculoso e mais forte.
O confronto se repetiu algumas vezes durante a partida; eu, atacante; ele, zagueiro. Parece que o procurávamos; evitá-lo seria covardia. 
Lembro que, numa jogada, meus óculos caíram na areia. Ele me olhou com escárnio, como dissesse: “Não bato em ninguém com óculos”. Fez um gesto com o pé, ameaçando pisá-los; mas foi apenas para ressaltar uma vulnerabilidade minha.
Nos anos seguintes, sempre que nos cruzávamos no Porto, trocávamos olhares intensos, hostis, ameaçadores. Ninguém queria esquecer. Esquecer era ser “menos homem”.
Ele continuou trabalhando na praia como barraqueiro. Um dia, vi que almoçava, numa marmita de alumínio, uma mistura de feijão com carne, farinha e pimenta. Várias vezes, encontrei-o sem camisa, bebendo cerveja na balaustrada do Porto até tarde da noite, dançando mecanicamente a música confusa e ruidosa que provinha dos carros estacionados.
O tempo atuou diferentemente sobre nós.
Aos poucos, ele foi se tornando cansado, débil, precocemente envelhecido. O rosto passou a apresentar uma expressão resignada, exaurida. O andar, cambaleante como o dos velhos.
Era cada vez mais difícil corresponder à intensidade de meu olhar.
Nos últimos anos, tornou-se um homem definitivamente alquebrado. A pele escureceu, como se encardida por um acúmulo de sujeiras; tornou-se enrugada, espessa, ressecada. O peito magro e descarnado, algo senil, como um estojo vazio. Uma permanente expressão de desalento na face, a boca desdentada, um boné torto na cabeça.
Algumas semanas atrás, aproximou-se de mim na praia, ofereceu-me uma cadeira e cerveja.
Após anos nos tratando como iguais, homens livres, guerreiros que se medem apenas pela força e capacidade de combate, a desigualdade de classes entre nós, enfim, venceu.
Desistiu da antiga contenda e dirigiu-se a mim como serviçal, reconhecendo que minha condição social me fazia consumidor dos produtos oferecidos por ele.
Assim se manifesta a injustiça social no Brasil.
Marcos A. P. Ribeiro
(11.11.10)

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